quarta-feira, 28 de setembro de 2011

As Palavras de um Anjo - PARTE I



“Isso é uma promessa!”, lembro-me até os dias atuais dessa frase, que tanto bombardeia minha mente. Era um passado distante, talvez dez ou quinze anos atrás; uma tarde de verão, com o sol radiando intensamente sobre a minha cabeça e a de Clarinha, minha eterna amiga. Estávamos em um descampado; era um dia quente e nos encontrávamos mui soados, por conta de nossas corriqueiras corridas.
“Isso é uma promessa, Dan!”, disse Clarinha, enquanto descansávamos sob a sombra de uma árvore. “Quando crescemos, casaremos. Eu e você”. É estranho e embaraçoso lembrar-se de uma promessa de casamento feito entre crianças de seus poucos anos, mas o sentimento que eu tinha para com ela era tão vivo, tão intenso, que parecia ser de adulto.
Lembro-me em seguida, como se tivesse acontecido no mesmo instante, eu partindo da pequena cidade de Jade, onde morava desde criança. Estava em um caminhão, olhando triste para trás, vendo Clara lacrimejar por minha partida. Ela gritava que iria me esperar, iria me esperar quanto tempo fosse, e que iríamos cumprir nossa promessa. Fiquei de correspondê-la todos os dias, entretanto, parti para uma longínqua cidade, o que me impossibilitou de revê-la durante dez anos seguidos.
E dez anos se passaram desde aquele fatídico dia que nossos destinos foram alterados por decisão dos pais de mudar de cidade. Eu cresci, e creio que Clarinha também cresceu. Hoje eu tenho dezenove anos, e voltei junto de meu amigo Stan ao meu berço, à minha cidade natal, a fim de reviver o passado. Não vim rezando encontrar com Clara – aquele dia modificou profundamente nossas vidas. Depois dele, apaixonei-me por outras mulheres, e imagino que a minha eterna amiga e primeira paixão estivesse namorando, ou apaixonada por outra pessoa. Era cruel trazê-la para o passado por um sentimento que morreu faz dez anos.
A cidade de Jade era pequena, com seus pouco mais de dez ou quinze mil habitantes. Era aconchegante, havia parado no tempo – o estilo de suas casas, vielas e tudo mais pertenciam ao início do século XIX – e possuía um estilo colonial. Era às margens de um pequeno córrego e, ao fundo, havia uma montanha, que davam um ar campestre à cidade. O povo da cidade era pacato e amigável. De tanto falar da minha cidade natal, Stan acabou por apaixonar-se por ela e, depois de muita insistência e paciência, conseguiu me convencer a vir com ele. De Jade até Cansul, onde morávamos, era longe e a viagem, de aproximadamente quarenta horas, era cara e cansativa.
Chegamos à pequena cidade por volta de dez horas da manhã, depois de mais de um dia sentado no ônibus. Nossas pernas e a base de nossas colunas estavam dormentes. Assim que nos levantamos, quase caímos – as nossas pernas não conseguiram nos sustentar, momentaneamente.
Saímos do ônibus que nos trouxeram até Jade e começamos a caminhar pela cidade. Stan já se encontrava maravilhoso com a pequena cidade, tão logo que a avistara.
- Nossa, Dan, sua cidade é muito linda! – disse. Caminhava vislumbrando cada pedaço da cidade.
Abri um sorriso.
Atravessamos a entrada de uma pequena viela, bastante íngreme. Como não poderia vir carros do lado e o mesmo era escuro e tenebroso, não demos bola. Stan continuava a vislumbrar a rua onde nos encontrávamos, enquanto eu apenas prestava atenção no que meu amigo dizia.
Stan havia acabado de atravessar a viela, e, como eu me encontrava logo atrás de meu amigo, era a minha vez de atravessá-la. Entretanto, para mudar todo o rumo de minha história, eis que surge um grito, um grito de desespero, vindo da viela. Um grito pedindo para alguém ter cuidado. Virei o rosto em direção à viela. Sobressaltei, tamanho meu susto. A toda velocidade, vinha uma garota, de seus, no máximo, vinte anos, descendo em sua bicicleta desgovernada. Poderia ter agido, tentado fazer alguma coisa, ou para desviar-me, ou para detê-la; contudo, o tempo foi-me pouco, insuficiente para tais manobras, e a bicicleta acabou por colidir comigo. Fui ao chão, junto da garota e da bicicleta. Ouvindo o estrondo da batida, Stan e todos os demais presentes no local pararam seus afazeres e fitavam o acontecido.
Com a queda, bati as omoplatas no chão e, assim, minhas forças se esvaíram do meu corpo momentaneamente. A garota estava sobre mim e fitava meu rosto. Tinha olhos esverdeados e suas bochechas estavam levemente coradas. Era incrivelmente bela e fitar essa beleza deixou-me enrubescido. Contudo, estranhamente, ao fitá-la, meu peito ardia furiosamente.
- Me desculpe! – disse a garota. Ao perceber que se encontrava sobre mim, tentou, de forma desesperada, se levantar. Saiu de cima de mim e se levantou. Tentei me levantar, entretanto, só consegui com a ajuda de Stan.
- Tudo bem, cara? – perguntou meu amigo
- Tudo. Só ralei um pouquinho!
- Mil desculpas! – disse a garota, envergonhada – Se eu fosse um pouco mais cuidadosa...
- Não se preocupe!
- Eu pago um café para você, como uma pedida de desculpas. E não aceito não como resposta! – disse a garota, de forma firme
O café onde eu e a garota nos sentamos era pequeno e tranquilo. Como era antes das onze da manhã de um dia de semana, o local estava vazio. Tomávamos uma pequena xícara de café, sentados frontalmente um com o outro.
- E suas costas? Como que está? – perguntou a garota. Ela preocupava-se com minhas costas, por conta de a mesma ter ralado no chão, retirando parte da pele e sangrando superficialmente
- Está melhor. Obrigado por estar preocupada comigo!
A garota sorriu enrubescida.
- O que aconteceu para você descer aquela viela a toda velocidade? – perguntei, a fim de puxar papo
- Foi o freio da bicicleta que quebrou no meio da descida... – disse
- Você estava indo a algum lugar... Parando aqui não te atrapalha em seus afazeres?
- Não se preocupe. Ia somente visitar meu irmão, mas tenho o dia inteiro!
- Visitar seu irmão?! – perguntei, mais por impulso que por razão.
- Sim, sim! – respondeu. Parecia melancólica ao adentrar naquele assunto – Meu irmão nasceu com câncer e ele está em tratamento no hospital.
Fiquei em silêncio. De tudo o que poderia imaginar, a resposta foi além. Contudo, não fiquei somente surpreso, mas senti uma vaga sensação de dejà vu.
Tentei formular uma frase que não parecesse que eu estava consolando-a; ela não mais precisava daquilo.
- Desculpa! Não sabia!
- Não se preocupe! – disse. – Não quero que pegue minhas dores! – respirou fundo. Queria retirar de seu coração aquela dor ali colocada por mim – E você? Estar aqui não te atrapalha? E tem seu amigo também, que está nos esperando.
- Não se preocupe. Estou apenas visitando a cidade junto dele. Temos o dia todo...
- Não é daqui? – perguntou a garota – De onde é?
- Então... – disse. Estava em dúvida se eu contava a uma estranha minha vida ou não – Eu sou daqui de Jade, mas saí ainda criança. Fui para outra cidade, longe daqui!
- Que maneiro... – disse. Estava feliz. Aquela conversa retirava por completo a melancolia do coração da garota, adquirida na conversa anterior – Tem um amigo meu que saiu daqui da cidade quando éramos criança.
- Sério?! – fiquei surpreso por saber que, em uma cidade pequena como aquela, havia outra história parecida com a minha – Que coincidência!
- Não é?! – disse a garota, sorridente. Parecia feliz. – Bom – continuou, se levantando. Levantei em seguida. – A conversa está boa, mas tenho que ir.
- Não está machucada? Precisa de ajuda? – perguntei.
- Não se preocupe – disse, enquanto nos deslocávamos para fora do estabelecimento – Estou de boa. Além do mais, estou indo ao hospital mesmo. Qualquer coisa, lá eu peço uns curativos! – disse, sorridente
A garota pagou a conta no balcão do caixa e saímos do local. Paramos na porta do estabelecimento, para nos despedirmos. Sentado na praça do outro lado da rua, Stan levantou-se ao nos ver, e caminhou em nossa direção.
- Bom – eu disse, virando-me em direção à garota – Prazer em lhe conhecer. Meu nome é Dan! – estendi a mão em direção à garota
- Dan?! De Daniel? – perguntou a garota, surpresa
- Sim, por quê? – perguntei, surpreso com a reação da garota
- Você me disse que mudou de cidade. Pra qual cidade você foi, que mal lhe pergunte? – perguntou a garota. De onde eu me encontrava, ouvia-se claramente o bater descompassado de seu coração
Eu não entendia bulhufas da reação da garota.
- Aconteceu alguma coisa?
- Desculpa, é que, em um momento, eu acreditei que...- ela parecia desesperada com a situação
- Tudo bem! – eu disse
- Ei, Dan, vamos... – disse Stan, perto do casal. Estava levemente irritado – Você sabe que eu já não aguento mais ficar sentado, e você me faz ficar mais sentado?
- Eu avisei que de Cansul até aqui é muito chão. Veio porque quis! – eu disse.
- CANSUL?! – gritou a garota, assustando-nos
- Sim, por quê?
- Dan?! – perguntou a garota. Seus olhos estavam cheios d´água e, assim, brilhavam intensamente. Seu olho cintilante e seu rosto corado fez-me voltar no meu passado.
- Clarinha?! – perguntei, de inopino. Stan assustou-se com minha reação.
- Dan... – Clarinha correu em minha direção e jogou-se em meus braços, dando-me um abraço apertado – Quanto tempo. – lágrimas começaram a escorrer de seus olhos – Senti tanta sua falta!
- Eu também!
Stan respirou fundo e disse, caminhando para longe do casal:
- É... já vi que isso vai demoraaaaaar!
Um descampado, às margens do rio que corta a cidade e no sopé de uma linda montanha. Tudo isso no meio da cidade. Era ali onde eu e Clarinha nos encontrávamos naquele findar da manhã. Queríamos colocar o papo em dia, e nenhum outro lugar em Jade seria mais nostálgico que aquele descampado, onde eu e Clara passamos intensos momentos juntos, quando crianças.
- Nossa... – disse Clara, enquanto se sentava no gramado – Nunca imaginei que fosse me sentar novamente aqui contigo, Dan... Você sumiu por tantos anos, que nunca consegui imaginar que fôssemos no rever!
Eu ri, rapidamente, enquanto me sentava.
- Morava muito longe. Depois, com o aparecimento e popularização da internet, não consegui te achar... – eu expliquei a ela
Clara sorriu e disse:
- E nem conseguiria. Não sou muito fã dessas coisas...
- Isso explica muita coisa, então! – brinquei. Rimos juntos.
Paramos de rir depois de alguns segundos.
- Mas, e aí, Dan. Conta. O que conta da vida? Temos muito papo para pormos em dia!
- Então... Eu agora estou fazendo faculdade...
- Sério?! – perguntou Clarinha, surpresa – Que massa!
Continuamos a conversar, sem percebermos o tempo passar, sem percebermos nada ao nosso redor, como sempre fazíamos quando crianças. Nem mesmo lembrei de que deixei Stan sozinho o resto do dia. Meu amigo deveria estar furioso comigo, mas ele entenderia depois de contar-lhe quem era Clara, na realidade.
Já havia se passado um incontestável número de horas. O sol já estava se pondo, no alto da montanha. Clara encostou-se em mim e fitávamos o pôr-do-sol.
- Nada como ver o pôr-do-sol desse local... – disse Clarinha
Eu assenti com a cabeça. Não conseguia parar de fitar minha amiga. Como ela se tornara bonita. Não que ela não era, quando criança; mas depois que cresceu, Clara tornou-se singularmente bonita. Tudo em seu corpo estava em perfeita harmonia, e dava-lhe um ar mais jovial; olhando para ela, dava-se a sensação de ela ser uma boneca, de tão perfeita que se tornara.
Alguns segundos depois de proferir sua frase, Clara virou o foco do seu olhar para o meu rosto, e pegou-me fitando-a. Entretanto, não enrubesci com o fato.
- Você está calado... aconteceu alguma coisa?
- Lembrando do tempo de criança! – eu disse. Estava nostalgicamente feliz.
Clarinha abriu um sorriso.
- Era tão bom aquele tempo, não era? – disse minha amiga, fitando meus olhos. Naquele instante, fitei seus redondos e cintilantes olhos verdes. Ficamos fitando um os olhos do outro durante alguns segundos. Em seguida, enquanto os fechávamos, chegávamos com nossas cabeças mais perto uma da outra. Cada vez mais perto, mais perto, mais perto... ficamos com nossas cabeças perto o suficiente não somente para sentirmos em nossas bochechas a respiração do outro, mas perto o suficiente para encostarmos nossos narizes um no outro... e não tão somente nossos narizes, mas também nossos lábios. E foi isso o que fizemos. Encostamos nossos lábios um no outro, e ficamos naquela incrível sensação durante alguns longevos segundos. Contudo, para o meu desagrado, repentinamente Clarinha abriu os olhos e percebeu o que havia feito. Desvencilhou-se de mim e, aparentemente irritada, deu-me um golpe com a mão aberta em meu rosto. Ainda surpreso com sua primeira reação, sobressaltei com a segunda.
- O quê...?! – tentava perguntar, com a mão sobre o local do golpe desferido por Clarinha
- Por que fez isso? – perguntou. Seus olhos estavam cheios de lágrimas. Clarinha estava irritada com a situação.
- Não foi por querer. Eu... – eu tentava articular alguma coisa plausível, entretanto, não lograva êxito
- Não chegue perto de mim. Não quero te ver nunca mais! – gritou Clarinha, correndo para distanciar-se o mais rápido possível de mim
Eu fiquei parado, fitando Clara correndo a toda velocidade, entendendo bulhufas do que aconteceu.
Para piorar a situação, naquele instante, eis que surge uma chuva repentina.
Já havia passado das oito da noite quando cheguei ao quarto de hotel. Estava encharcado e, pior do isso, arrasado por dentro – a última situação era tão visível externamente quanto a primeira situação.
Stan estava sentado em uma das duas camas do quarto de hotel, assistindo TV tranquilamente, enquanto a chuva castigava a cidade do lado de fora. Ao me ver entrando, encharcado e melancólico, perguntou a mim:
- O que aconteceu, Dan?
- Não quero falar sobre isso! – eu disse, adentrando no quarto. Caminhava pelo local como um zumbi. Meu corpo estava no quarto do hotel, entretanto, minha mente continuava no descampado, duas horas antes. Não conseguia entender a reação de Clarinha, não conseguia entender, sobretudo, a minha reação. Por que a beijei? Vê-la como ficou fantástica foi o suficiente para eu beijá-la, ou tinha algo a mais?
- OK! Não vou continuar a perguntar... – disse Stan. Meu amigo parecia frio, mas ele me conhecia como ninguém, e sabia que forçar-me a falar deixar-me-ia irritado
O tempo passou como um relâmpago atravessando o céu. Dias e dias passaram-se rapidamente, enquanto eu ainda era corroído pelo remorso da minha atitude no descampado. Não conseguia compreender não tão somente a reação de Clarinha, mas, sobretudo, a minha de beijá-la. Foi a pior atitude que já pude fazer na minha vida.
Apresentei a Stan a cidade de Jade, expliquei as histórias dos lugares e parte da história de minha vida. Fingi que estava tudo bem comigo, mas queria acima de tudo encontrar-me novamente com Clarinha e redimi-me com ela. Contudo, durante quatro dias seguidos, não encontrei em nenhum momento com Clara. O destino estava sendo mui cruel comigo.
No quinto dia, atrevi-me a adentrar no hospital durante o período de visitas para tentar encontrar com Clarinha. Conhecia seu irmão, apesar da pouca idade que o mesmo possuía quando saí de Jade, e adentrei procurando seu quarto. Todavia, não logrei êxito novamente. Como Stan já havia combinado comigo de passar o quinto dia fora nas cachoeiras ao redor da cidade, aproveitei o mesmo dia para procurar Clarinha por todos os cantos da cidade. Comecei no hospital e, em seguida, passeei pela cidade a fim de encontrá-la. Por fim, pensei em bater na casa dela, mas a insegurança foi superior e acabei por não fazer. No findar da noite, ao lembrar-me de que iria embora da cidade no final do dia seguinte, arrependi completamente de ser tido covarde.
O último dia de minha estada em Jade havia chegado. Durante meu repouso noturno, veio à minha mente um sonho, constatando de que não estava aproveitando a minha tão sonhada viagem a Jade, depois de dez anos, por causa de um deslize de minha parte. Acordei disposto a aproveitar meu último dia. Stan e eu saímos logo pela manhã para tomar café da manhã no restaurante ao lado do hotel.
- Que bom que acordou disposto hoje, Dan. Já estava preocupado contigo! – disse Stan, enquanto escolhíamos no balcão do restaurante o que iríamos comer
Ri por alguns segundos e brinquei:
- Precisamos estar dispostos, a fim de aguentar quarenta horas de viagem!
Stan riu.
- Verdade!
Andava olhando Stan, a quem estava dirigindo a palavra, não olhando onde estava esbarrando. Acabei por esbarrar em alguém. Não a fitei a princípio, mas percebi, pelo som, que derrubei somente um talher.
Virei o foco do meu olhar de forma desesperada, pedindo desculpas. Ao fitar quem era, sobressaltei. Era Clarinha. Ao me ver, Clarinha irritou-se.
- Você... – disse, fechando o semblante
Clara rapidamente saiu de perto de mim. Stan nada entendia da situação, pois nada sabia do que ocorrera no descampado. Naquele instante, percebi minha chance de redimir-me partir novamente, e poderia ser a última chance. Quis aproveitá-la a todo custo, e acabei por segurei o braço esquerdo de Clarinha. Ela parou de andar, virou o foco de seu olhar para mim e perguntou, irritada:
- O que quer, Dan?
- Naquele dia, eu não quis... – sentia um pouco de vergonha de falar o que acontecera no descampado – Eu queria... – estava difícil formar uma frase, tamanho o nervosismo
Repentinamente, para surpresa minha e de Clarinha, seu celular tocou. Ela não sabia, mas, ao atendê-lo, saberia que seu destino mudaria para sempre, saberia que aquele 14 de janeiro seria marcado para sempre em sua vida, junto do telefonema.


Não deixem de ler a segunda parte desta História escrita por Douglas Andrade.

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