domingo, 25 de setembro de 2011

Éramos cinquenta

Éramos cinquenta. Apenas cinquenta pessoas que se organizaram em busca dos seus direitos como cidadãos. No final daquele dia, éramos um só corpo, formado por mais de um milhão de pessoas.

Aquele dia 24 de julho vai entrar para a história de nossas vidas, foi um dia que provou a todos que, quando quer, o povo é unido.

Tudo começou não naquela gélida manhã de sábado, mas sim muito antes. Quando? Praticamente na última eleição, quando o novo corpo parlamentar foi eleito, ou talvez no dia 1º de janeiro, quando este foi empossado. Não importa exatamente o dia, importa saber que estes novos parlamentares roubaram enquanto puderam de nós, do povo. Roubaram até o dia em que saiu uma bomba, uma reportagem nas principais emissoras de TV do país, alegando um enorme esquema de corrupção, que ia do Presidente da República ao faxineiro do palácio. Bilhões e bilhões de reais desviadas paras as gordas contas bancárias dos políticos, através do apelidado Presidenteduto, ou seja, o presidente foi o mentor do rombo aos cofres públicos.

Naquela noite, eu e mais uns amigos meus, todos estudantes indignados com o Presidenteduto, resolvemos dizer um "Basta!" e mostrar aos políticos de que o povo não queria mais somente "pão e circo" e que o povo queria um "Basta!" em tamanha corrupção.

Resolvemos nos unir em frente ao palácio presidencial na manhã seguinte, 24 de julho, um sábado. Fizemos cartazes vilipendiando a imagem dos políticos e chamamo-nos de tudo o que imaginar de chulo. Era hora de ir às ruas, e assim fizemos. Na manhã seguinte, encontramo-nos em frente ao palácio presidencial. Conseguimos reunir cinquenta pessoas, dispostas a manifestarem por horas e dias, se fosse necessário, até o Presidente da República pedir desculpas para o país em frente às principais emissoras, além de devolver nosso dinheiro. Sabíamos que era pedir demais, mas não podíamos deixar mais um escândalo passar impune.

E lá estávamos na manhã seguinte, em frente ao palácio presidencial, hasteando nossos cartazes e gritando "Fora, ladrões!", desde 8 da manhã. Éramos cinquenta, apenas cinquenta, mas, com toda certeza, éramos os porta-vozes de toda a população brasileira.

Depois de uma hora gritando e manifestando, já havíamos chamado a atenção das emissoras e de toda a população, não só da capital, mas de todo o país. Chamamos também a atenção de nossos parlamentares, que não estavam nem um pouco felizes com aquela situação.

Uma hora depois, não havia sequer uma resposta dos políticos, nem da polícia. Nesse momento, subi em um improvisado palanque e comecei a discursar. Era hora de incitar os manifestantes.

- Povo aqui presente, meu nome é José. José da Silva. Um nome comum, como de todos vocês aqui presentes. Um nome comum, dado a uma pessoa comum, como todos vocês. Pessoa comum, trabalhadora, que soa a camisa diariamente para colocar comida na mesa de minha casa, eleitor, como todos vocês, mas que já está cansado dessa roubalheira sem freio - os manifestantes foram se incitando diante das palavras por mim proferidas - Ninguém aqui aguenta mais tamanha roubalheira. Ninguém aqui mais aguenta os políticos roubaram o nosso dinheiro, conseguido com o suor de nosso trabalho diário, e ainda por cima esses miseráveis ainda zombam, ainda debocham de nossas caras. Eles acreditam que nós, o povo brasileiro, somos otários, que engolimos calado todos esses escândalos. Eles também acreditam que podem, em época de eleição, pedir nosso voto, que daremos. NÃO SOMOS BURROS. ESTAMOS CASADOS DESSA ROUBALHEIRA. QUEREMOS JUSTIÇA.

No momento em que citei a palavra "JUSTIÇA", ela se tornou a nossa voz. Em um coro, todos começaram a gritá-la, incessantemente. Gritamos até aparecer o chefe da polícia e dizer para os manifestantes:
- Seus vagabundos, vão trabalhar ao invés de ficarem aí, à toa. Vão estudar, vão tomar um rumo de suas vidas. Vão capinar uma horta, faz algo de útil, ao invés de ficarem aí, vagabundeando. Se realmente trabalhassem, não estariam aí vagabundeando. Dou-lhes meia hora para saírem daí, ou prenderei a todos.

As palavras do chefe de polícia, ao invés de intimidar os manifestantes, deixaram-nos mais incitados. De forma uníssona, os manifestantes começaram a vaiá-lo, abafando qualquer palavra que ele ousasse proferir naquele momento. Entretanto, quando eu peguei para falar, todos se silenciaram. Eu estava no comando dos manifestantes. Virei para o chefe da polícia e disse:

- Estamos no exercício de nossa cidadania. Não somos obrigados a obedecer sua ordem. Não é legítima - o povo me aplaudiu, deixando o chefe da polícia mais irritado que antes - Podemos fazer manifestações como bem nos aprouver, e é indigno que você ou qualquer outro faça o que está fazendo. Se é capacho dos políticos, não é problema nosso - a incitação dos manifestantes chegou em seu auge - Não estamos depredando nada. Você não pode nos prender.

Houve, em seguida, um imenso aplauso.

- É o que veremos! - disse o chefe de polícia, enquanto se retirava, sob uma intensa vaia

Continuamos por ali, durante meia hora. Ninguém ficou temeroso diante a ameaça da polícia. Pelo contrário. Estávamos confiantes, confiantes de que tudo era somente um blefe.

9 horas e 30 minutos daquela gélida manhã de 24 de julho. Continuávamos firmes em nosso objetivo, firmes e filmados, porque estávamos em todas as emissoras de TV, que vira e mexe dava plantão sobre aquela manifestação. Mas o que estava por vir foi além de um simples plantão de emissora de TV.

Naquele trigésimo minuto da nona hora daquele sábado estamos uma pesada cavalaria, literalmente falando, se aproximar da gente. Olhamos, estupefatos. Foi quando vi a repressão cavalgando, literalmente, em nossa direção. Lembrei-me dos meus pais contando seus dias na época da ditadura, o calar da força opressora em cima dos cidadãos. E, naquela manhã de 24 de julho, a ditadura estava mostrando que seus resquícios ainda perambulavam pelo Brasil.

Vinha uma enorme cavalaria em nossa direção. Armados de cassetetes, a polícia estava disposta a nos enxotar daquele local de toda maneira. Assim que vimos a cavalaria, largamos nossos cartazes e saímos correndo. "A polícia havia vencido a manifestação e os políticos continuariam no poder, nos roubando a cada dia. Seríamos considerados baderneiros, pessoas contrários à ordem social e política do país e os ânimos da população logo se acalmariam", esse era o meu negativo pensamento daquele instante.

Os manifestantes se dispersando rapidamente, como formigas. Mesmo dispersados, correndo como loucos, os policiais ainda corriam em nossa direção. Eles queriam nos prender a todo custo, principalmente a mim, que era o cabeça da manifestação.

Consegui fugir da polícia durante cerca de dez minutos, mas acabei sendo pego. O chefe da polícia, a cavalo, em derrubou com um golpe de cassetete na nuca. Caído no chão, tentei me arrastar, já que o golpe arrancara momentaneamente minhas forças para andar. Entretanto, o policial desceu do cavalo antes que eu conseguisse fugir dele, e ele começou a me surrar, enquanto dizia:

- Pensou que fosse fugir? Você me deu trabalho. Mas agora acabou. Eu vou te prender, e vou te surrar tanto, que você vai pedir para nunca ter nascido.

O chefe da polícia começou a me surrar. Estava perdendo a consciência. Contudo, por sorte minha, um dos cinegrafistas presentes estava próximo a mim e filmou a cena de violência e as vociferações do polícia. E aquela imagem, passada ao vivo para toda a nação, causou o ódio geral da população.

Depois de minutos e minutos de surra, o policial me levou para ser preso. Eu estava um bagaço, a bochecha e o olho esquerdos estavam inchados. Meu nariz e boca sangravam, minhas costelas doíam horrores e eu estava cheio de hematomas pelo corpo. Não conseguia fazer absolutamente nada, só escutar e enxergar, com o resto de minha consciência. Percebi que meus amigos também apanharem bastante, menos do que eu, o cabeça da manifestação, mas todos os cinquenta manifestantes foram surrados. Estávamos sendo colocados nos camburões, quando escutamos alguém chamar no rádio da polícia, desesperado:

- Viatura 22, viatura 22... Solicitação de todas as unidades no centro da cidades. Urgente! A população está nervosa, tomou os principais postos da cidade - Correios, hospitais, universidades e escolas, e está depreciando tudo. Não temos mais como parar esse quebra-quebra. Solicitação urgente de reforços!

Naquele momento, percebi que minha manifestação, a ação da população e, talvez o principal, as surras, não foram de tudo em vão. A cena da polícia oprimindo de forma violenta uma mera revolta popular, de cinquenta pessoas, completamente desarmadas, incitou a população, que rapidamente lembrou-se da era negra da ditadura.

Éramos cinquenta. No final daquele dia, éramos um só corpo e uma só voz, uma voz que gritava "Basta!"

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